Em suas Memórias (1759), François-Marie Arouet – mais conhecido como Voltaire -, contou ter conhecido tantos escritores ‘sem dinheiro e desprezados’ quando jovem que teve a certeza de não querer fazer parte desse ciclo.
O escritor francês, muito lembrado por seus ataques à Igreja Católica e suas manifestações em favor da liberdade de expressão. Apesar de não ter nascido pobre, não tinha muito ‘jeito’ em administrar seu dinheiro, e acabou viciado em jogos de azar ainda muito jovem.
No ano de 1722, como de era costume pelo menos uma vez por ano, perdeu tudo o que tinha em jogos de cartas. Seu pai morreu no mesmo ano, e no testamento deixara claro que Voltaire só poderia usufruir de sua herança quando completasse 35 anos. Cláusula que não influenciou sua vida pois, bem antes disso, faria fortuna ganhando na loteria.
A primeira loteria da França foi criada em 1719, como tentativa de encher os cofres públicos – como o Parlamento inglês havia feito em 1694 – após uma bolha econômica ter estourado.
Então, foram emitidos títulos das dívidas da Prefeitura de Paris, e só os portadores dessas cotas poderiam participar da loteria. Bem, Voltaire era um deles, mas não se conteve em apenas deter alguns desses títulos e foi além, voltando-se para as regras. Isso aconteceu quando ele e um amigo estavam jantando e ‘filosofando’ sobre o assunto.
A questão era: os bilhetes custavam um milésimo do valor da cota da dívida. Isso quer dizer que se você era dono de uma pequena cota, era possível comprá-los por valores muito baixos. Por exemplo: se a cota valia mil francos, cada bilhete iria custar um franco. Mas essa pessoa teria as mesmas chances de ganhar a loteria do que uma pessoa que tivesse um título cem vezes mais caro, só que pagando menos.
Foi então que indagaram o que aconteceria se comprassem todos ou a maioria dos bilhetes assim que fossem liberados, por um franco cada. Para fazerem isso, precisariam de todas as cotas de baixo valor existentes, fazendo com que se juntassem a outras pessoas. Após reunir o grupo, compraram todos os bilhetes e o resultado foi: ganharam um milhão de francos.
Em sua autobiografia em terceira pessoa, Comentário Histórico sobre as Obras do Autor de ‘Henriada’ (publicado apenas em 1976), Voltaire conta sobre o feito:
“As autoridades emitiram bilhetes em troca dos títulos do Hotel de Ville (prefeitura), e os ganhadores foram pagos em dinheiro, de tal maneira que o grupo de pessoas que comprou todos os bilhetes ganhou um milhão de francos. Voltaire se associou a inúmeras pessoas e teve sorte.”
Imagem: Julia Weis
A máfia dos bilhetes
Os sorteios da loteria aconteciam no oitavo dia de cada mês, a partir de 1729. Os registros até fevereiro de 1730 existem até hoje. No primeiro concurso, os pagamentos foram feitos de maneira bastante aleatória, porém, a partir da segunda edição um grande número de bilhetes de menor valor começam a ganhar, sendo registrados por um mesmo comprador.
Um exemplo é Charles-Marie de La Condamine (o amigo que jantava e devaneava com Voltaire), que comprou 13 bilhetes de 1 franco cada e ganhou 13 mil francos. Alguns meses depois, o prêmio de mais de um milhão de francos foi dividido entre 13 pessoas, todos já haviam ganho nos meses anteriores. Quando as autoridades perceberam o esquema, mudaram as regras. Mas, nesse ponto Voltaire já havia acumulado mais de meio milhão de francos.
O controlador-geral de Finanças da época, Michel Robert Le Peletier des Forts, denunciou o grupo acusando-os de agir ilegalmente, mas o conselho real declarou que o problema eram falhas nas regras da loteria e considerou o grupo inocente.
IMAGEM: Julia Weis
Ambição
Como quem ganha sempre quer mais, Voltaire não ficou para trás. Depois de fazer uma ‘pequena’ fortuna, investiu seu dinheiro para que aumentasse cada vez mais. Aplicou grandes quantias em negócios de suprimentos para o Exército, em Paris. Em Lorraine (Estado semi-independente), aproveitou do desespero das autoridades em busca de recursos financeiros por meio de títulos de dívidas em condições vantajosas para os compradores e comprou 50 cotas, revendendo-as pelo triplo do preço.
Um de seus amigos, o marquês D’Argenson, disse certa vez: “Nosso grande poeta sempre manteve um pé no Monte Parnaso [monte que deu origem ao movimento literário Parnasianismo] e outro na rua Quincampoix [uma espécie de Wall Street da Paris do século 18].”
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A vida literária
Depois de conquistar sua fortuna, Voltaire finalmente se viu livre para viver daquilo que amava, comprando sua independência e liberdade para escrever sobre aquilo que bem entendesse. E onde quisesse, pois, quando num lugar suas palavras não eram bem recebidas simplesmente mudava-se de cidade. Viveu em reclusão idílica com sua amante, Émilie du Châtelet, uma brilhante cientista. Logo depois se mudou para a cidade-estado Genebra (na atual Suíça). Ao ter suas obras rejeitadas pelos calvinistas, voltou para a França e se instalou no castelo de Ferney.
Voltaire morreu em 1778, aos 83 anos, em Paris. Deixando um legado de várias reformas na França (como a Liberdade de imprensa; tolerância religiosa; tributação proporcional e redução dos privilégios da nobreza e do clero); também foi o precursor da Revolução Francesa. Além de uma bibliografia com pouco mais de cinquenta títulos.
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